Penso que é inegável para quem vive no contexto português, que existe um certo sentido de Portugal ser inadequado. Inadequado para a Europa, inadequado economicamente, politica e, também, culturalmente. Este facto manifesta-se, entre muitas formas, na impressão de que a arte portuguesa é, de certo modo, secundária à estrangeira. Este problema não é de todo recente. Desde, pelo menos, o século XIX, se não mais, que a elite portuguesa, nomeadamente a metropolitana, demonstra um quase total desinteresse pelo interior do país, preferindo olhar para o resto da Europa. Tal atitude pessimista tem, hoje em dia, um impacto deveras triste no estado da nossa arte e cultura. Não é propriamente a carência de uma ou outra, mas sim a visibilidade e interesse, especialmente entre as gerações mais jovens, que pelo seu interesse enorme na internet, consomem cultura predominantemente anglo-saxónica e nipónica. Quer por falta de contacto cultural, quer pelo chauvinismo metropolitano, existe um setor relativamente considerável da população que desconhece e não interage com certas expressões da cultura portuguesa. Uma destas expressões é o Jogo do Pau, arte marcial do Portugal interior. Relembraremos, então, esta nossa arte marcial, as suas origens, a sua história, o seu estado presente e as suas especificidades.
Tal como noutros países europeus, em Portugal a arte marcial está associada, por um lado, às tradições orientais (karaté, taekwondo, kung fu, judo), e por outro, às artes marciais contemporâneas, isto é, a esgrima moderna, o boxe e as suas variantes. São estas as artes que predominam no imaginário português. Mas tal como no resto da Europa, existe toda uma tradição de artes marciais, herança da nossa história belicista, que abrange o combate ofensivo e defensivo, desarmado e armado, usando uma miscelânea de armas. Uma destas vertentes marciais é o uso do pau de madeira, cujas metodologias traduzem-se facilmente para as armas de haste, isto é, uma haste de madeira com uma lâmina na ponta (machados, lanças, alabardas, martelos, foices, etc…). Assim, temos um pouco por todo o lado, da Eurásia à África e nas Américas, tradições de combate com paus de madeiras: a Canne de combat francesa, a Gatka dos siques da Índia, o Bojutsu japonês, o Bataireacht irlandês e o Jogo do Pau português, entre outras. Contrariamente às tradições de combate do leste asiático, o Jogo do Pau é uma prática do mundo rural e popular. Os praticantes e mestres da arte não são monges ou sábios budistas, são camponeses, pastores, viajantes, gente do povo. Assim, o Jogo do Pau é um jogo prático, ausente de esoterismos e espiritualismos, com o foco virado para a autodefesa contra um ou vários oponentes. De fácil aprendizagem mas de difícil mestria, o Jogo do Pau distingue-se dos seus equivalentes euroasiáticos por se focar na maximização da força de impacto e pelo combate simultâneo contra vários oponentes [1].
Contudo, este mesmo caráter rural implica igualmente que a transmissão e ensino da arte fosse principalmente oral, sendo por isso disputada a sua génese cultural devido à falta de fontes escritas anteriores ao século XIX. Algumas teorias são generalistas, apontando para o já referido aspecto belicista da Idade Média como principal motivador para o desenvolvimento de metodologias de autodefesa. Outra teoria propõe que o Jogo do Pau seja de origem celta, o que explicaria a sua prevalência no norte do país, local onde esta expressão cultural é mais visível, estando assim inserido no repertório cultural celta juntamente com os pauliteiros de Miranda e os caretos de Podence. Seja como fôr, sabemos que o Jogo do Pau era definitivamente praticado desde, pelo menos, o século XIV, um pouco por todo o reino, existindo com maior predominância no Alto Minho e Trás-os-Montes [2], onde perdura até aos dias de hoje com maior persistência.
Observamos que ao longo da história o varapau foi, sem dúvida alguma, uma ferramenta de autodeterminação do povo lusitano, tendo o seu uso sido recordado diversas vezes ao longo do século XIX. Fosse durante as invasões francesas em defesa da nação, na revolta Maria da Fonte pela tradição (de 1846), ou mesmo no movimento Justiça da Noite da Ilha Terceira, o varapau destacou-se como a arma da população rural e o instrumento da justiça popular. Era nestas vertentes que o Jogo do Pau se integrava no quotidiano dos povoados praticantes. Sendo simultaneamente um desporto bélico e um símbolo de independência masculina, o Jogo do Pau manifestava-se de diversos modos: como rito de passagem para a idade adulta, como fonte de entretenimento nas feiras e festas, e como último e derradeiro limite dos dramas interpessoais, conflitos de interesse, vinganças, rivalidades e ajustes de contas. Era por meio desta violência ritualizada que as populações dispensavam a sua própria justiça, muitas vezes até como resposta ao seu desagrado pelas decisões do poder oficial ou quando este era considerado insuficiente. Era neste pilar que o movimento Justiça da Noite se alicerçava, pois, caso injustiças escapassem ao escrutínio dos tribunais, “(…) pela calada da noite que homens mascarados e armados de varapau faziam a sua justiça” [3]. Em Portugal continental, esta iustitia populi fez-se sentir com maior intensidade no norte do país. Podemos destacar, em particular, o município de Fafe, distrito de Braga, cujo uso da racha de lodo como instrumento de justiça constituía uma parte importante da identidade e memória cultural da terra. Contam as lendas e a história oral que em Fafe a justiça se fazia principalmente a partir de combates com vara, tanto entre homens como entre mulheres, tanto por humildes camponeses como por nobres hegemónicos [4]. Como é referido numa entrevista de 1960, na freguesia de Bucos, Braga, “em Fafe (…) realmente, era o pau que mandava” [5]. A Justiça de Fafe, como ficou assim conhecida, e outros movimentos de justiça popular estagnaram e desapareceram lentamente ao longo do século XX, traçando-se este declínio à maior proliferação e uso de armas de fogo, inclusivamente pelas forças policiais que conquistam assim o monopólio da força e garantem a legitimidade dos tribunais face a outras alternativas fora do poder estatal.
Apesar deste revés, o Jogo do Pau prevaleceu nas andanças do tempo como desporto marcial, sustentado, por um lado, pela vontade de preservação da tradição, e por outro, pelo interesse que atrai. É ainda no século XIX que o Jogo do Pau se começa a desenvolver como desporto, através da criação de associações e clubes dedicados, assim como pela transcrição das regras e práticas deste jogo. Uma destas associações mais antigas é o polivalente Ginásio Clube Português, em Lisboa, fundado em 1875, tendo o Jogo do Pau sido uma das primeiras modalidades aí praticadas. Esta instituição sobrevive até hoje. São também inúmeras as associações municipais focadas no Jogo, que procuram simultaneamente desenvolver a prática desportiva mas também, e essencialmente, preservar este rico património cultural.
Mesmo com esta modernização, o Jogo do Pau continua a ser, em muitos aspectos, uma arte informal, de transmissão oral, na qual a figura do mestre tem uma importância considerável na transmissão do conhecimento. Com o declínio do uso efetivo desta arte, e consequentemente, do seu conhecimento prático, o Jogo do Pau prevalece pela passagem da aprendizagem de mestre para aprendiz(es). Assim, as associações e clubes de Jogo do Pau que têm vindo a ser criadas desde o século XIX, baseiam os seus ensinamentos e legitimidade nesta linhagem epistemológica, tendo muitas sido fundadas por mestres ou seus alunos. Como exemplo, temos o extinto Grupo de Jogo do Pau de Silvares, fundado por António “de Covas”, antigo aluno do Mestre Serafim Ribeiro da Mota, muito considerado na região de Fafe desde os anos 20 do século XX até à sua morte nos anos 80 do mesmo século.
O Jogo do Pau continua a ser uma arte descentralizada por natureza, apresentando divergências regionais e até mesmo individuais, em matéria de metodologia, terminologia e expressão. Mesmo com iniciativas que tentaram aglomerar e fazer do Jogo do Pau um desporto mais uniforme, como foi o caso do trabalho levado a cabo pelo Mestre Nuno Russo, com o seu sistema da Escola de Esgrima Lusitana do Santo Condestável, em Lisboa, a arte deste jogo permanece bastante dividida. Hoje em dia, são reconhecidas nove escolas, ou seja, práticas, todas com a sua própria história, mestres e tradições distintas: Norte; Fafe; Guarda; Cabeceiras de Basto; Ribatejo; Lisboa e Margem Sul; Salto; Algarve; Açores [6]. No entanto, e independentemente da escola, a base do Jogo do Pau permanece inalterada. O combate contra vários oponentes continua a ser um aspeto crucial, algo relativamente raro noutras artes marciais deste tipo. O Jogo do Pau atual visa, simultaneamente, ensinar este desporto e manter a sua memória cultural violenta. Como exemplo, vejamos a vertente Roda do Meio, onde um batedor tem de escapar de uma roda de picadores que o cercam. Ou mesmo o chamado Jogo de Quelhas, onde um oponente luta contra vários numa esquina, ou num espaço estreito, para simular as lutas reais que ocorriam em ruas e vielas. O treino e a prática são uma encenação deste passado, funcionando para manter viva a memória coletiva.
Notas
[1]https://www.youtube.com/watch?v=Cv3ROAi7TFk&ab_channel=FandabiDozi (10:24 – 11:16)
[2]https://jogodopau.wiki/index.php?title=Origem_do_Jogo_do_Pau
[3]https://jogodopau.wiki/index.php?title=Justi%C3%A7a_da_Noite
[4]https://jogodopau.wiki/index.php?title=Lenda_da_Justi%C3%A7a_de_Fafe
[5]https://www.youtube.com/watch?v=WGBm2aJyd3A&t=282s&ab_channel=Hist%C3%B3riadoJogodoPau-History 21:47 – 21:58
Natural de Setúbal, Marco Serote Roos cedo manifestou paixão pela história daqui e acolá. Licenciou-se, por isso, em História no ano de 2020 pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde refinou este interesse por um fascínio pela história da Ásia, história global e pela metodologia de história conectada. Aprofundou estes assuntos no Mestrado em História Moderna e da Expansão Portuguesa, na mesma Faculdade, dando especial enfoque às Viagens e Viajantes Portugueses na Ásia Central (séculos XVI-XVII), tema da sua dissertação que lhe mereceu as felicitações do júri e o diploma de Melhor Mestre em História do ano letivo de 2021/2022. É praticante ativo de recriação histórica militar da época moderna, com especialização nos terços militares do século XVI e XVII, enquanto membro da Associação de Recriadores e Colecionadores de Armas Históricas Portugal (ARCAHP). Suplementa esta atividade com a prática de esgrima histórica, aprendendo o manejo de várias armas da época.
Natural de Setúbal, Marco Serote Roos cedo manifestou paixão pela história daqui e acolá. Licenciou-se, por isso, em História no ano de 2020 pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde refinou este interesse por um fascínio pela história da Ásia, história global e pela metodologia de história conectada. Aprofundou estes assuntos no Mestrado em História Moderna e da Expansão Portuguesa, na mesma Faculdade, dando especial enfoque às Viagens e Viajantes Portugueses na Ásia Central (séculos XVI-XVII), tema da sua dissertação que lhe mereceu as felicitações do júri e o diploma de Melhor Mestre em História do ano letivo de 2021/2022. É praticante ativo de recriação histórica militar da época moderna, com especialização nos terços militares do século XVI e XVII, enquanto membro da Associação de Recriadores e Colecionadores de Armas Históricas Portugal (ARCAHP). Suplementa esta atividade com a prática de esgrima histórica, aprendendo o manejo de várias armas da época.